escrevo ao som
(despropositado mas momentaneamente/sempre fascinante)
de "A day in the life"
Pessoas.
Mais pessoas.
O dobro de pessoas.
Rostos totalmente desconhecidos, rostos totalmente queridos, e rostos totalmente gastos: os que conhecemos "de vista". Insetos gigantes, palco do eu sozinho (a simples referência já me valeu a pena), espaços disputadíssimos, e a ligeira impressão de que há algo de errado com a cidade. De encontro, outra ligeira impressão: a de que há algo de muito certo com a cidade.
As contradições!
Tudo resumido numa tirolesa que, ao invés de descer, subia. Tudo resumido na deliciosa bagunça rítmica dos hermetismos pascoais. Tudo resumido em minha dupla identidade universitária: amigos da faculdade de História me tornavam caçula; amigos da faculdade de música me tornavam velho; amigos outros me tornavam outro. Tudo resumido nas palmas que a platéia dedicava aos músicos em cada intervalo entre um movimento e outro do Carmina Burana (pra muitos isso significa um atentado às convenções dogmatico-musicais): o público domado de um concerto tradicional deu espaço ao público "popular", que aplaude ou vaia quando lhe apraz aplaudir ou vaiar; que não suporta as entradas e saídas do maestro ao final da apresentação. Contagiado pela multidão que alertara a si mesma que a música é a música - dentro ou fora de uma luxuosa sala de concerto -, o maestro regeu um bis, e o "Ó Fortuunaaaaaaa" pôde ser outra vez entoado por um trio de amigos que gozavam o fato de serem três dos poucos que conheciam a letra da obra.
As contradições!
Eu pensava: "oh, que lindo mundo de pessoas andando por esse centro iluminado e receptivo!"
E logo repensava: "ah, que sujo mundo de pessoas pisando nesse centro maltratado e hostil!"
Indivíduos avulsos compunham a cena. Figuravam imersos em sua solidão certamente mais contemplativa, mais cheia de amores breves, mais de olhar atravessado ao me ouvir passar cantando (quase naturalmente). Grupos e mais grupos de amigos aumentavam e diminuiam, protagonizando a tônica da noite: braços levantados (às vezes pulantes), celular no ouvido, e as variações do "me viu?" (onde vc tá? me achou?, tá me vendo?, tô pulando, tá vendo? à direita do palco... perto da árvore. ok, na catraca do metrô.)
Essa nossa imensa vontade de encontrar alguém.
(Você esteve por lá? Não te vi. Se procurei?)
E essa chance de surpresa que vem sempre com um gostinho de bem-vinda.
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Texto motivado pela "Virada cultural".